Estupradas por conhecido, elas não conseguem denunciar: violência não acaba
No decorrer desse ano, editei inúmeras matérias de violência contra a mulher em Universa. Mergulhei um universo sombrio: o da violência sexual. E não só aquela, repugnante, em que um desconhecido nos aborda na rua e nos obriga a fazer sexo com ele.
Mas também quando um conhecido estupra a mulher. Esse tipo de agressão é um pouco mais difícil de digerir. Não raro, o senso comum palpita que a mulher devia ter reagido, gritado, denunciado. Mas o poder silenciador de nossa sociedade é aterrorizante.
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Não é algo que fazemos conscientemente. É que as forças necessárias para falar de casos como esse geralmente faltam às vítimas, que estão fragilizadas. Também não há muito apoio das pessoas próximas. "Como vou deixar que minha filha denuncie meu irmão", pensa a mãe da vítima, "isso vai destruir minha família". O raciocínio é uma forma de negação. Se ninguém joga o que aconteceu no ventilador, nada fica espalhado pela sala e dá para fingir que nunca aconteceu, certo?
Errado. Karina Buhr descreve sua omissão com uma emoção corajosa no texto que divulgou ontem. Ela criou coragem a partir dos depoimentos das mulheres estupradas por João de Deus, em dezembro passado. Só ontem conseguiu verbalizar o nome do estuprador: o pai Dito de Oxóssi, que morreu no último dia 15. Seu longo relato, que vale a leitura, nos faz pensar em como a vítima de abuso continua sendo abusada para sempre. "Não queria contar isso, é terrível lembrar, queria esquecer, mas é algo que não se apaga. Senti muita culpa durante e depois", ela diz.
A morte do algoz despertou em Karina os sentimentos mais profundos e devastadores. A liberdade nunca chega. E ela, bravamente, expôs tudo isso num relato que pode ajudar as mulheres que vivem situações como essa em que a fé camufla o abuso. "Mas preciso falar, quero que caso alguém mais tenha passado por isso lá ou em outro lugar se sinta mais confortável pra abrir isso pro mundo, nessa tarefa de livrar o peso das situações de abuso e da convivência com a culpa, apesar de sermos vítimas."
Mesmo assim, ela é julgada por ter feito isso apenas após a morte do criminoso. À Karina, meu mais solidário abraço. Num tsunami de sentimentos inconfessáveis, que envolvem ainda a injusta vergonha de ser vítima, ela fez justiça como pôde. E, assim, certamente alcançou quem ainda não consegue sair de uma teia desse tipo.
A repórter Ana Bardella escreveu a importante e indigesta matéria: "Revejo meu abusador na ceia". Uma amiga me escreveu imediatamente para contar que ela também vê o abusor na ceia. A repulsa já chega dias antes do Natal. Ela não denuncia por pressão da mãe, a velha história de que isso arruinaria a família. Minha amiga disse que se preocupa com a filha dele, mais nova. Mas não faz nada. No Natal, procura ficar com as primas de quem gosta. "Tem uma coisa sobre o abuso que é o fato dele nunca acabar, sabe? Aquilo fica reverberando em você para sempre de várias formas. Mesmo que tenha ocorrido na minha infância, já me tirou o sono muitas vezes na vida adulta", ela disse.
Muito mais leve que a história dela, mas também criminosa, é a situação que minha amiga descreveu dia desses. Em casa, falou meio perplexa de quando estava sentada no ônibus e um cara em pé insistia em passar de raspão seus genitais no ombro dela. Ela disse que ele provavelmente estava sem cueca. E ficou paralizada em um ônibus cheio, diante da evidente ereção do criminoso. Todos à mesa nos exaltamos: "Você tinha que ter gritado!" Ela respondeu timidamente que não conseguiu fazer nada, envergonhada e travada tentando se esquivar da violência.
O quadro, infelizmente, é conhecido nosso. Hoje temos o respaldo da lei de importunação sexual, criada para que mulheres se sintam mais seguras em situações como essa. A prática, no entanto, é diferente. Culturalmente, como minha amiga no ônibus, parece mais fácil calar e esperar que aquilo acabe o mais rápido possível. Denunciar, no entanto, é uma forma de proteção. Não só para quem vive o crime ali, naquele momento. Mas para todas as outras mulheres que são potenciais vítimas do criminoso.
Tudo isso me fez pensar no livro mais importante que li em 2019: Missoula, de Jon Krakauer, que vira a mexe volta nas conversas sobre o assunto. Meninos de boa família também são estupradores. As garotas estupradas na cidade americana do estado de Montana sofrem uma segunda violência quando denunciam: e essa é eterna. Os cidadãos duvidam dela, o júri duvida delas, elas ouvem provocações durante todo o julgamento que, às vezes, se arrasta por meses. E é comum verem, no fim desse calvário, seu estuprador inocentado.
Somos (quem foi estuprada e quem não foi) vítimas de uma sociedade machista muito injusta que duvida e culpabiliza vítimas. O jeito de mudar isso é falar sobre isso o máximo possível, doa a quem doer. É mais fácil ainda botar a boca no trombone se você nunca foi violentado. E é obrigação de todos nós dar voz a quem está fragilizado.
Eu sugiro emplacar o indigesto assunto à mesa, nas festas de fim de ano. Tem sempre alguém que será sensibilizado pela mensagem e poderá pensar duas vezes antes de julgar uma vítima.
Faço isso por aqui e torço para alguém ouvir.
Você pode continuar essa conversa comigo no Instagram: @lubugni .
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