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Furar a fila está fora de moda. Exigir seus direitos, não

Luciana Bugni

31/10/2017 08h00

Por que uma pessoa pode furar a fila e todas as outras têm de esperar? (Foto: iStock)

 

Todo mundo sabe (ou deveria saber, já que tem o direito de usar) como funciona um posto de saúde. Todo mundo sabe também que os órgãos públicos (aos quais temos direito e pagamos caro para isso em impostos) funcionam de maneira bem diferente da qual deveriam. Então vou poupar as descrições longas e tristes dos absurdos que vemos por aí no atendimento médico não-particular.

Cheguei ao posto de saúde em uma terça-feira de manhã para vacinar meu filho e o lugar estava muito mais cheio do que o costume: havia cerca de 80 pessoas na minha frente. Perguntei se tinha atendimento preferencial, me informaram que não. Sentei com o bebê e escutei uma enfermeira dizer que a previsão era de duas horas para quem havia chegado àquela hora. Cogitei ir embora — não é legal ficar com um bebê por muito tempo em um lugar em que as pessoas estão doentes, vocês sabem. Esperei mais um pouco. Descobri que a quantidade de pessoas era referente ao surto de febre amarela na zona norte de São Paulo, que lotou os postos da região pela procura por vacina e os moradores foram encaminhados para outras regiões da cidade. Decidi ir embora e voltar na semana seguinte quando, talvez, a situação estivesse sob controle.

Na saída, passei pelo guichê onde são triadas as vacinas e disse educadamente: "Estou indo embora, mas gostaria de dar uma sugestão: seria bom fazer um atendimento preferencial para idosos, gestantes e pessoas com bebê de colo. Não poderei ficar aqui duas horas com o bebê." Uma das enfermeiras respondeu rispidamente: "Você está vendo algum bebê aqui?" Eu olhei para os lados — alguns idosos, gestantes, nenhum bebê. Olhei novamente para ela que completou, ríspida: "É óbvio que fazemos atendimento preferencial. Fica aí que alguém te atende!" Só então entendi que essa era a maneira grosseira da atendente dizer que eu tinha, sim, direitos. Expliquei que eu não era a única cidadã com direitos ali, que havia uma ordem de chegada, mas ela estava gritando comigo e não ouviu o que eu dizia. Havia um idoso deficiente em uma das cadeiras que estava lá antes de eu chegar, entre outras pessoas, e eu queria que a ordem fosse respeitada. Enquanto pensava em uma situação para o imbróglio, a enfermeira gritava e um senhor me chamou, aos berros.

"Moça, moça: esse homem acabou de chegar e vai furar a fila de todo mundo que está aqui. Ele foi lá dentro direto falar com a enfermeira e ela já está fazendo a ficha dele."

Olhei para o canto da sala e havia um homem de terno, muito bem vestido, que se destacava das outras pessoas no posto. Ele estava calado, olhando para baixo. A senha dele era pelo menos cem números depois das pessoas que eram as próximas a serem atendidas, mas ele ia ser colocado à frente de todos. O senhor que me chamou gritava: "você não vai passar na frente de ninguém aqui. Você não é melhor que os outros." Eu, bebê no colo, o senhor deficiente e outras cem pessoas tentávamos entender o que estava acontecendo. Alguém disse que ligaria para a polícia, eu disse que ligaria para o jornal, afinal, a confusão que se formava ali era merecedora de uma matéria. Vários seguranças me cercaram, meu bebê chorava, um deles me disse baixinho: "liga mesmo, moça, faz uma reclamação na ouvidoria, a senhora está certa". Quando eu disse a palavra jornal e peguei o celular, o homem de terno levantou a cabeça, me empurrou (com o bebê no colo) e saiu rapidamente da sala. A enfermeira que havia sido grosseira chorava. Eu disse para ela que entendia que ela devia estar vivendo um dia de muita pressão, que seria bom fazer um intervalo. Ela passou um tempo chorando e reclamando das condições de trabalho do setor público. O senhor que havia denunciado o fura-fila se acalmou e seria o próximo a ser atendido. Eu e os outros preferenciais esperávamos uma orientação. A outra centena de cidadãos comuns esperava ainda mais — teriam que ver o desdobramento antes de resolverem suas questões e poderem voltar aos seus trabalhos. Caos.

Surgiu uma pessoa que parecia ser a chefe, bem-vestida, maquiada, com cara de descansada. Perguntou o que estava acontecendo e eu expliquei. Rapidamente ela montou um novo posto de vacinação na sala ao lado, destinado apenas à febre amarela. As enfermeiras se organizaram, alguns idosos foram atendidos e chegou minha vez. A sala de espera já estava bem mais vazia, provavelmente porque muita gente desistiu ao assistir à confusão. Enquanto eu esperava com o bebê no colo, um homem veio na minha direção: "uma pena ele ter ido embora, ficou com medo de a senhora chamar o jornal mesmo. O homem de terno… Ele trabalha onde eu trabalho, mas ele é vereador…", disse tímido, com aquele olhar resignado de quem se acostumou a ser menos que os outros.

Eu fiquei ali parada, pensando na metáfora daquela manhã: o posto de saúde é um Brasil pequenininho em que a população não vê seus direitos básicos atendidos, é mal tratada, vê políticos pegando o que é nosso e fica quieta.

Queria dar um abraço no senhor que denunciou o vereador fura-fila e dizer para todos os outros ali que é assim, aos poucos, que a gente muda o mundo. Se o vereador voltou outra hora e foi atendido antes das pessoas que estavam ali? Não sei, provavelmente. Mas quero pensar que a vergonha que ele passou ali ao ser denunciado o tenha feito perceber que ninguém é melhor do que ninguém.

Eu só ia dar vacina no meu filho. Tem muita gente vivendo situações ruins de verdade amontoados em filas subumanas nos hospitais. E quem vai brigar por elas se quem deveria lutar está tentando se dar bem?

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Sobre a autora

Luciana Bugni é gerente de conteúdo digital dos canais de lifestyle da Discovery. Jornalista, já trabalhou na “Revista AnaMaria”, no “Diário do Grande ABC”, no “Agora São Paulo”, na “Contigo!” e em "Universa", aqui no Uol. Mora também no Instagram: @lubugni

Sobre o Blog

Um olhar esperançoso para atravessar a era digital com um pouco menos de drama. Sororidade e respeito ao próximo caem bem pra todo mundo.


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