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Luciana Bugni

Xênia falou primeiro de sexo e machismo na TV e merece despedida de estrela

Luciana Bugni

24/08/2020 18h32

Em capa de revista de 1980: um braço de ferro com Lula. Xênia sempre foi uma fortaleza (Reprodução Instagram)

Recebi uma mensagem essa tarde que gelou minha espinha. "Você leu sobre a Xênia?" Eu já sabia que isso poderia acontecer. Minha amiga Xênia Bier tinha 85 anos e um dia eu saberia da morte dela pelos portais de notícias. Aconteceu hoje e uma profunda tristeza tomou conta de mim. Tristeza porque uma mulher tão à frente do seu tempo se vai em tempos em que estamos caminhando para trás. E tristeza por mim, que perco sua visão inteligente da vida.

Fiquei pensando na última conversa, em fevereiro. Eu estava arrumando umas gavetas e decidi reformar uma túnica que ela me deu certa vez. Era uma roupa que ela usava na TV Bandeirantes e adorava e quis me presentear porque "sabia que eu ia valorizar". Realmente o tecido é lindo, mas ficou meio largo. Liguei para pedir autorização para mandar para a costureira. Ela deixou rindo: "Faz o que quiser com esse pano velho".

Tive contato próximo com ela desde 2011, quando virei editora da revista AnaMaria, de onde ela era colunista. Sem acesso nem interesse pela internet, Xênia passava a coluna por telefone, ditando o conteúdo toda semana. Uma conversa que poderia durar 10 minutos, mas sempre durava uma hora, uma hora e meia, tamanha a quantidade de insights, de referências e de histórias que ela trazia. E generosidade: precisava uma pessoa que viveu tanto, que sabia tanto, querer saber minha opinião? Xênia queria saber. Respeitava o que os mais novos diziam. E às vezes ria com deboche quando eu discordava: "Você vai ficar mais velha e perceber que estou certa". É, acontece mesmo. Xênia já tinha entrevistado meio mundo e parecia fazer isso a cada conversa.

Na última vez em que nos vimos pessoalmente, passamos um domingo em seu apartamento nos Jardins comendo bolo. Mencionei que estava lendo um livro muito longo, de mil páginas. Ela já tinha lido, claro. Muito culta, leitora voraz, ela ligava certas tardes na redação de AnaMaria para comentar o editorial da Folha. Para dizer que estava preocupada com os rumos no país. Para trocar ideias sobre a criação de adolescentes: "Como pode aquela criança que nos ama tanto virar um jovem que nos despreza?", perguntava intrigada. Ou para falar de novela, assunto que dominava muito bem. Foi a jornalista Lidice Ba quem levou Xênia para AnaMaria. "Entrevistá-la é uma aventura mental, dá sempre impressão de saber menos, muito menos que ela", dizia Lidice, redatora-chefe da revista por oito anos. É verdade.

Hoje, quando um repórter me ligou para saber como era trabalhar com Xênia eu tive um clique: quanto do olhar crítico que uso hoje no meu trabalho como colunista eu não aprendi com ela? Nesses anos todos, em tantas conversas, quanto de sua experiência eu não tomei emprestado? Queria contar isso para minha amiga hoje. Ela concordaria sem falsa modéstia e diria "realmente sei umas coisinhas…"

Quando pessoas idosas morrem, a gente tende a não ficar tão triste quanto se alguém morre "antes da hora". No réveillon de 2019, liguei para ela para fazermos nosso balanço anual e ela disse que desse ano não passava. Eu ri: ela vinha dizendo isso desde que fez 80 anos. Eu já dizia que não adiantava ela achar, quem decidia não era ela. "Realmente, o cara lá não quer me levar ainda", ria.

O tipo de humor era esse aqui, de uma coluna de 2017: "Não faz cara feia, não, leitora. Afirmo: o maior castigo do ser humano é a velhice. E se algum cretino vier pra perto de mim com aquela coisa ridícula de a melhor idade, sento-lhe a bengala na cabeça!" Quem resiste?

Não foi em 2019 que resolveram levá-la, foi em 2020. Uma pena. Xênia merecia um velório de estrela de TV. Uma mulher que defendia a mulher quando isso estava longe de estar na moda. Que peitou o racismo, que casou com negro, que peitou o machismo, que foi falar de sexo na TV. A coragem de falar o que pensa não rendia só amizades. Foi fechando o cerco para poucos, pouquíssimos amigos. Até que hoje essa voz forte cheia de verdades se vai numa cerimônia íntima de cremação. Triste demais. Ana Bardella, repórter de Universa e minha colega na AnaMaria sente a dor e me diz: "Gostaria de te dar um abraço". Nossa, que ano é esse que nos tira até esse direito?

Xênia não gostava de fotos. Acostumada com os holofotes, achava que para posar, precisaria de uma produção. Em AnaMaria, ficamos por anos com uma foto bem antiga dela na coluna. Então pouca gente a viu com os cabelos brancos e a cara de vovó rabugenta. Mas ela pegava meu filho no colo e olhava encantada a criança se rasgar de rir. Até penso em usar a foto desse momento para ilustrar esse texto. Melhor não, reflito. Vamos de Xênia produzida e linda, para que ela fique na história exatamente como gostava: uma incrível estrela da TV.

A gente pode falar mais disso no Instagram.

PS: Lembrei de quando Xênia me contava histórias de São Paulo nos anos 50, quando era jovem. Ela dizia que a Paulista era repleta de ipês e que as flores cobriam a calçada. E que as pessoas andavam com cautela para não pisar nas flores. Assim eu imagino sua passagem, minha amiga. Com um caminho cheio de flores.

PS2: Olha o que ela dizia sobre as hipocrisias da religião lá na década de 80. Tão atual que ficará eterna.

Sobre a autora

Luciana Bugni é gerente de conteúdo digital dos canais de lifestyle da Discovery. Jornalista, já trabalhou na “Revista AnaMaria”, no “Diário do Grande ABC”, no “Agora São Paulo”, na “Contigo!” e em "Universa", aqui no Uol. Mora também no Instagram: @lubugni

Sobre o Blog

Um olhar esperançoso para atravessar a era digital com um pouco menos de drama. Sororidade e respeito ao próximo caem bem pra todo mundo.