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Luciana Bugni

"Isso é coisa de preto" e outros jeitos de minimizar o racismo como piada

Luciana Bugni

09/11/2017 11h15

Randall e a esposa, em "This is Us": iguais, mas diferentes (Foto: Divulgação)

Num dos episódios da genial série "This is Us", um personagem negro e bem-sucedido é confrontado pelo pai que insinua que um negro rico sofre menos preconceito que os pobres. Randall (Sterling K. Brown, que também faz o promotor Christopher Darden, em "O Povo Contra O.J. Simpson") diz agressivamente: "Você acha que eu não sei que o segurança está ali na frente só porque estamos aqui dentro dessa loja cara? Que quando eu for pagar vão pedir documentos que não pediriam a nenhum branco?" Os dois se calam. Outro  dia, um amigo disse que, cansado de ser perseguido pelo segurança todas as vezes que ia ao supermercado ao lado de sua casa, disse: "eu moro aqui do lado, venho aqui quase todo dia… não vou roubar esse lugar só porque sou negro."

Eu não sei o que é passar por isso. Não tenho ideia do que vive um negro do momento que acorda até o momento em que vai dormir. Não sei o que é ouvir da mãe desde pequeno que "tem de se esforçar o dobro". Ou como é ter a cor da pele citada cada vez que vai ouvir um elogio ("aquele ator negro talentoso, aquela negra bonita"). Não sei como é sentar no ônibus e as pessoas se afastarem de você. Como é demorar a ser atendido em uma loja de roupas. Não conseguir um táxi. Eu sou branca, não sei o que vive um negro. Por isso, não posso (assim como nenhum branco pode) minimizar o racismo. Dizer que é frescura. Ditar regra sobre como deveriam se comportar em relação ao preconceito que sofrem todos os dias.

A única coisa que a gente pode é nunca compactuar com comentários preconceituosos. Nem aqueles inofensivos. Nem aqueles mínimos, que, de tão intrínsecos, nem soam tão mal assim. "É coisa de preto" é um clássico da brincadeira dita como carinhosa que vejo meu marido ouvir. Ele diz que está acostumado, sabe que os próprios amigos que falam essas coisas acham a frase absurda. Mas depois de meia hora ouvindo aquilo, fica bem incomodado. "Penso: tá, vamos brincar com outra coisa? Falar de outra pessoa?", ele diz. A expressão falada a sério ou em tom de piada, dita por nossos amigos queridos, é extremamente agressiva. 

Outra coisa que escuto muito é "mas ele não é negro…". Como se, ao ouvir essa constatação, fosse ficar mais tranquila: "ufa, achei que tinha casado e tido filho com um negro, ainda bem que você está me dizendo que ele é só moreninho, viu?" Um mestiço não pode ser negro?, perguntou meu amigo e colunista do UOL Miguel Arcanjo Prado. Ele deve correr atrás de sua metade branca como se fosse a única alternativa para se dar bem?

Já falei aqui do livro "Na Minha Pele", do Lázaro Ramos, mas acho fundamental a leitura para quem quer entender um pouco o que é estar na pele de um negro. "Sim, nós somos iguais, mas também não somos iguais. E vocês, meus amigos brancos, precisam assumir esse compromisso de, juntos, encontrarmos um caminho."

Tudo isso para dizer que o comportamento de William Waack, no vídeo que viralizou na quarta (8), é inadmissível. Não se brinca com essas coisas, porque é violento. Não se atribui à cor da pele nenhuma atitude que condenamos. Nem de brincadeira.

Me espanta que ainda, em 2017, um homem branco e poderoso como ele se sinta confortável para fazer uma piada absurda e agressiva como essa e rir depois, como se estivesse na sala de casa fazendo um comentário engraçadinho sobre o comportamento dos filhos, sobre a programação da TV, sobre a quantidade de sobremesa que vai comer. Isso não dá pra aceitar. 

Eu, mulher branca, não sei ainda encontrar o caminho ao qual Lázaro se refere. Mas sei que com essas "brincadeiras" que doem no outro a gente não vai chegar a lugar algum. 

Sobre a autora

Luciana Bugni é gerente de conteúdo digital dos canais de lifestyle da Discovery. Jornalista, já trabalhou na “Revista AnaMaria”, no “Diário do Grande ABC”, no “Agora São Paulo”, na “Contigo!” e em "Universa", aqui no Uol. Mora também no Instagram: @lubugni

Sobre o Blog

Um olhar esperançoso para atravessar a era digital com um pouco menos de drama. Sororidade e respeito ao próximo caem bem pra todo mundo.